terça-feira, 31 de agosto de 2010

Balthus - Sleeping Girl

Miguel Manso - NA MORTE DA AVÓ

não bastasse a humilhação pública de morrer

espera-se do corpo que cumpra com indiscutível

pompa o intolerável protocolo de ausentar-se


a penosa execução circular e nocturna do velório

a presença inconveniente dos agentes funerários

os adereços lutuosos a obscena maquilhagem


no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa

cerimónia (não há muito a dizer, sejamos honestos

e soa até a insulto que se pronuncie o nome de


Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito

– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma

gravata com motivos facetos, uma camisa florida –


depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa

sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso

a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante


o avô vai buscar as memórias da infância (por que

razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há

na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia


como se aceitasse, com constrangedora submissão, que

o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem

para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia


a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez

da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria

contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota


( In Santo Súbito, seu último livro )