terça-feira, 30 de março de 2010

Natércia Freire - NÃO

Não formar nenhuma ideia
do que somos ou seremos
mas entre as vozes que fogem
precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
que penetram no espaço
de eventos primaveris.
E dar as mãos aos espectros
beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
abraçar quem nos ignora
dormir com quem não nos vê
mas precisar do calor
de quem nunca nos encontra.


in Antologia Poética, Assírio & Alvim

The Pogues - Summer In Siam

Larry Rivers- Webster

sábado, 27 de março de 2010

Cruzeiro Seixas - Nada do que amo me dá o que quero

Nada do que amo me dá o que quero
por isso não amo
nem o amor
nem o sonho
nem a pintura
e os pintores
os heróis e o seu heroísmo,
nem estes meus poemas
copo de água fresca
que mais aumenta a sede.

Amo o que não amo
em todas estas coisas,
e indefinidamente
no fundo de tudo
amo a poesia e os poetas
que dão sempre mais
sempre muito mais
do que peço,
como tu,
mesmo eternamente ausente
meu amor.

Francis Bacon -Two Figures in the Grass

Antoine D'Agata - stigma

sexta-feira, 26 de março de 2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

António Gancho - Quando desaparecer

Quando desaparecer
hei-de pedir à noite
que me consuma com ela
que me devaste a alma
não quero mais
quero desaparecer na noite
e só de noite consumir-me

José Luis Ochoa - Victory rose

terça-feira, 23 de março de 2010

Eugénio de Andrade - Respiro o teu corpo

Respiro o teu corpo:

sabe a lua-de-água

ao amanhecer,

sabe a cal molhada,

sabe a luz mordida,

sabe a brisa nua,

ao sangue dos rios,

sabe a rosa louca,

ao cair da noite

sabe a pedra amarga,

sabe à minha boca.

Per Kirkeby - Immer wieder

John Surman - Winter Wish

segunda-feira, 22 de março de 2010

Fernando Echevarría - Descobriremos o nosso movimento

Descobriremos o nosso movimento
quase uma folha,
ou quase uma pupila
que se inclinasse e só nos desse o tempo
de uma sombra passar e entrar no olvido.
Mas, sobretudo, veremos
pensar-se um ar antigo
que vem ao movimento
quando mover-se nem sequer é escrito.

Makoto Fujimura - Between Two Waves of the Sea

Silke Schoener - Homage to C.D. Friedrich

Brendan Perry - Utopia

domingo, 21 de março de 2010

Augusto de Campos - Olho por olho

Sophia de Mello Breyner Andresen - Às Vezes

Às vezes julgo ver nos meus olhos

A promessa de outros seres

Que eu podia ter sido,

Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta

Só me vem o terror e a mágoa

De me sentir sem forma, vaga e incerta

Como a água.

Vinicio Capossela_Se Potessi Amore Mio

sexta-feira, 19 de março de 2010

Albert Rafols Casamada - Voz lejana

neblinoso
el sol
de un rosa trémulo
viste las ramitas
de un árbol seco

más allá del cristal

silencio o rumor
de otras notas

claridad lejana
la voz

la voz

qué fino es
su relieve
pero brilla

Albert Rafols Casamada - El paso de los signos

Albert Rafols Casamada - Civitas Aurea

Vinicio Capossela - Che coss'è l'amor

quinta-feira, 18 de março de 2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Eugénio de Andrade

Cada sonho morre às mãos de outro sonho

Alex Kanevsky - Proserpine

Alex Kanevsky - Proserpine

domingo, 14 de março de 2010

Ruy Belo - O valor do vento

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto


in Todos os Poemas, Vol. 1
Assírio & Alvim, 2001

Giorgio De Chirico - Hector et Andromache.

Giorgio de Chirico - Natureza morta com cabeça de Apolo e luva de borracha

sábado, 13 de março de 2010

depeche mode -blasphemous rumors - gregorian mode

Escola de Veit Stoß: Altar Rosenkranz

Antonio Gamoneda - Un ángel gótico

Inmóvil, claramente
inhumano en la
pura catedral
vive un ángel.
Un ángel no tiene ojos.
Un ángel no tiene sangre.
Él no vive en la vida, él no vive
en la muerte, él está
vivo en la belleza.

sexta-feira, 12 de março de 2010

quarta-feira, 10 de março de 2010

Antonio Gamoneda - Ainda

Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.


Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.


Ah a pureza das facas abandonadas.

Frida Kahlo - thinking about death

100 Años Frida Kahlo

terça-feira, 9 de março de 2010

segunda-feira, 8 de março de 2010

domingo, 7 de março de 2010

Luis Fernández

Luis Fernández

quinta-feira, 4 de março de 2010

Pedro Mexia - PÓ

Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

Anselm Kiefer - Jerusalem

Anselm Kiefer - The Red Sea

quarta-feira, 3 de março de 2010

Miguel Manso - Último cigarro

o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima insuficiência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia

Tony Scherman - GENERAL BOB AT COLD HARBOR

Tony Scherman - VIRGINIA AS LIBERTY

terça-feira, 2 de março de 2010

Eric Fischl - Ten Breaths: Congress of Wits

Eric Fischl

Sophia de Mello Breyner - Quadrado

Deixai-me com a sombra

Pensada na parede

Deixai-me com a luz

Medida no meu ombro

Em frente do quadrado

Nocturno da janela



in Obra Poética III, Caminho, 2ª edição; 1996

segunda-feira, 1 de março de 2010

Mario de Andrade

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.

'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!

Bobby McFerrin does Wizard of Oz

Andy Warhol - turquoise marilyn

Richard Avedon - Andy Warhol